Que
o transito da cidade de Natal está um caos, isso todo mundo já sabe. Os motivos
também: As terríveis e infindáveis obras da copa (“os legados”); A falta de
estrutura das vias públicas para acomodar uma absurda frota de veículos
particulares que, de acordo com as pesquisas, trata-se da segunda maior frota
no Brasil em comparação com o numero de habitantes, perdendo apenas para São
Paulo; As outras obras inacabadas que se arrastam lentamente há anos ou
encontram-se totalmente paradas, por pura incompetência dos governantes e
comodismo nosso; Os motoristas inábeis e, pior ainda, os maus educados que se
acham espertos furando filas e ignorando totalmente o que é gentileza.
Agora,
imaginemos esse trânsito, às seis horas da noite, na véspera de um feriado, na
saída do conjunto Cidade Satélite para atravessar a BR 101 e alcançar o sinal
da entrada da Avenida Maria Lacerda... Foi o que enfrentei ontem.
Lá venho
eu, seguindo uma procissão de carros para alcançar a BR. Na esquina, ponho o braço
para fora, esticando o polegar, em apelo às gentilezas das pessoas para me
deixarem atravessar e rezando que uma moto não me pegue de surpresa pelo meio ao
transpassar os corredores dos carros.
Consegui,
enfim, chegar ao outro lado da pista. Agora exercito a paciência de enfrentar
uma fila enorme de carros, passando apenas a primeira marcha e me arrastando um
metro por vez até alcançar o sinal.
Por
sorte, uma músiquinha nessas horas ajuda a relaxar e isso eu sei bem
aproveitar, faço um showzinho particular dentro do carro ignorando os motivos
para estresses lá de fora e ignorando também os olhares nos outros carros com
os balõesinhos saindo da mente: - É uma doida?
Eis
que subitamente acaba o meu “relex”, de longe eu já observo os benditos “flanelinhas”
limpando (ou sujando mais ainda) os para-brisas dos carros em troca das moedas
que a gente se vê na obrigação de dar. A sensação que eu tenho é quase a mesma
de ser pega numa blitz da polícia rodoviária. A vontade de fugir daquilo.
Já
começo a tatear dentro do carro tentando encontrar o pagamento para o serviço
do rapaz. Não encontro nenhuma moeda. Inicio então o ensaio mental do meu
discurso para me justificar: – Desculpe-me, estou sem nenhuma moeda. Fica para
uma próxima vez?!
Dito
e feito. Lá vem ele, direto pra meu carro, ignorando os meus apelos de – Não,
não precisa! Não limpe, estou sem moedas! – O tal já inicia o seu trabalho
espremendo uma garrafinha de plástico e jogando aquele jato de água no para-brisa
que dá a impressão de ir atingir os nossos rostos.
Fico
ali, impotente, assistindo, torcendo que ele, ao menos, não quebre as palhetas
do limpador, como fez outro, me dando um prejuízo maior de ter o vidro
arranhado.
O
jato de água escorrega pelo vidro e aos poucos vai revelando a imagem daquele
menino-homem, compenetrado no seu serviço instantâneo de limpar o vidro. Fico
prestando atenção nele.
Observo
o seu “quase sorriso” de dentes estragados e a minha mente viaja em
questionamentos: - A quem será que ele recorria quando criança, em seu
sofrimento com dor de dente? – Quem lhes acalentava os medos, as ansiedades e
as frustrações? – Quem lhes supria as carências de mimos, de atenção e até
mesmo de necessidades básicas? – Quem contribui para torna-se o que hoje é - “um
limpador de para-brisa”?
Lhes
pago apenas com um sorriso carinhoso e um obrigado. Recebo de volta outro gesto
e palavras de gentileza e saio liberada pelo sinal verde, com o coração
apertado levando a imagem daquele rapaz que poderia ser meu filho e que se fosse
não estaria ali naquelas condições.
(Ivana Lucena
01/05/2013).
7 comentários:
Ivana,
Leio o que escreve e imediatamente me chegam à mente palavras como viver, sobreviver, dignidade, (des)governar, eu sei lá que mais...
Os seus textos respiram vida, transpiram emoções, destilam dignidade.
Beijo :)
Ai, que lindo AC! E você transpira poesia, atém mesmo em um simples comentário. Fico muito feliz em saber que consigo transmitir tudo isso para você, espero alcançar dessa mesma forma, outras pessoas também. bjs
Amiga Ivana, acho que o trânsito anda caótico em todas ou nas principais capitais deste país. Aqui em Porto Alegre a coisa não é diferente. Um abraço. Tenhas uma boa noite.
Olá, Dilmar! Obg pela sua participação. Dizem que a quantidade exorbitante de veículos particulares nas ruas é o grande sinal da ineficiência dos transportes públicos e, por consequência, da incompetência dos governantes. Um abraço.
Gostei Dona Ivana. Tb não me sinto bem em não dar dinheiro e tb em dar. Eu sou uma mera estudante, não tenho estagio, emprego ou bolsa de pesquisa, vivo com o dinheiro q meus pais me dão qdo tão d bom humor e ainda qdo chego nesses sinais tenho q dar o pouco q tenho ou uma desculpa q não tenho, q muitas vezes eles recebem de mal grado, como c eu não quisesse ajudar.
Ah, Ivana, fico tão feliz que tenha lido. É assim mesmo o sentimento, conflituoso. É tanto caos social que nem conseguimos enxergar muitas vezes uma saída. Mas as saídas nem sempre são portas, as vezes são meras frestas que se abrem para passar um sorriso, uma palavra gentil, um gesto, uma atitude, uma ajuda qualquer. Cada um deve fazer a sua parte no momento em que se sentir tocado à fazê-la. bjão, meu amor.
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