domingo, 18 de maio de 2014

ACONTECEU COMIGO

Viajava de um bairro para outro da cidade, dentro de um transporte coletivo. Apenas o meu corpo encontrava-se sentado naquele banco, a mente vagava em outras dimensões conduzidas pela indignação da minha ida obrigatória à missa em homenagem a governadora, a quem, a meu ver, não estava muito merecida de tal manifestação.

Meu estado de “sonhando acordada” foi despertado por muitos gritos que vinham da parte do meio do ônibus. Eu estava na parte de trás. Só nesse momento observei que o ônibus havia parado. Eu, sem nenhum tempo para refletir sobre o que estava acontecendo, corri em direção ao lugar para onde as pessoas estavam olhando.

Eu nunca fui uma pessoa curiosa a ponto de me atrair por qualquer coisa que parecesse escandalosa. Então, com certeza, não foi a curiosidade que me moveu até lá. Na verdade, estou certa de que não foi uma decisão muito da ordem do consciente, foi algo mais intuitivo.

Tudo aconteceu rápido demais e as minhas ações não pareciam guiadas por reflexões. Não eram atitudes previamente planejadas, eu fazia simplesmente “o que tinha que ser feito”.

Do local onde estavam dirigidos todos os olhares, eu vi sobre os braços de uma jovem um bebê e notei que alguma coisa errada acontecia com ele. Deduzi que a jovem era a sua mãe e observei que ela gritava desesperada. Vi que a criança estava tendo algum tipo de ataque, de convulsão. Sem hesitar, arranquei a criança dos seus braços e orientei de forma decidida que me seguisse.

Desci do ônibus, pela porta traseira, carregando a criança, seguida pela jovem que realmente era a mãe da criança e outra senhora que carregava algumas bolsas, depois soube, que era a avó do bebê. O ônibus continuava lá parado, com todas as pessoas, certamente, olhando atônitas para aquela cena que acabara de participar.

Assim que desci, parei imediatamente, acenando com a mão, o carro que vinha atrás do ônibus, falando alto e rápido, expliquei ao motorista que iríamos para o pronto socorro do Hospital Walfredo Gurgel. Não estávamos próximo, mas também não era muito distante do local em que nos encontrávamos no momento.

Enquanto falava, ainda com a criança no braço, abria a porta do carro e empurrava a cadeira, sentei-me no banco de trás, orientando o tempo inteiro que entrassem, a mãe do bebê ficou do meu lado e a senhora, sua mãe, sentou-se junto ao motorista, fechando a porta.

No caminho até o hospital, o motorista e a avó da criança permaneciam calados, atentos para a estrada e o trânsito. No banco de trás a criança desfalecia em meus braços, agora sem os ataques convulsionais. A jovem mãe, chorava, recusando-se a olhar para o filho, repetindo – O meu filho está morrendo! ... O meu filho está morrendo!

Naquele momento, como durante toda a situação, embora tivesse ações rápidas, eu continha calmamente o meu sentimento. Acalentando a criança, que respirava mais tranquila no meu colo, embora sem cor alguma na face. Tranquilizava a mãe dizendo – Calma, minha querida, está tudo bem agora. Seu filho teve uma convulsão e isso é normal acontecer em caso de febre. Ele está bem e logo estaremos no hospital. Vai dar tudo certo. Não se preocupe.

Quando chegamos no hospital, descemos imediatamente em direção ao pronto-socorro. Nem me recordo de haver ao menos olhado para o motorista que nos trouxe, que dirá agradecido a ele o favor. Passei a criança para os braços da mãe e empurrei ambas para dentro da porta de acesso aos médicos, enquanto continha a recepcionista que insistia na necessidade de “preencher a ficha de entrada”. Deixei a avó preenchendo a ficha. Despedi-me dela de forma breve, sem tempo para saber nenhum outro detalhe a seu respeito ou deixar qualquer informação que me identificasse. Nem me lembrei dessas coisas. Lembrei-me apenas de orientá-la, quando me falou que o bebê estava com febre desde a madrugada e que elas haviam voltado para casa da parada do ônibus, porque naquela hora não passava nenhuma, a ligar para a SAMU, caso ocorresse outra situação semelhante. Pedi a moça do hospital que a orientasse melhor sobre isso e saí dali para continuar o meu caminho.

Já dentro do outro ônibus, que me levaria para o meu destino inicial daquele dia, sentada novamente encostada na janela, eu não conseguia mais conter a emoção por tudo aquilo que se passou. O choro veio descontroladamente. Uma sensação de gratidão me invadiu inteira. Como eu estava agradecida por ter colaborado com aquela missão.

Não me senti grande, mas importante instrumento de auxilio. Eu acabara de ser a mais beneficiada de todos e não entendia o meu merecimento para isso.

Entendi que não há nada de especial em mim para fazer essas coisas, qualquer um faz e muita gente já deve ter tido experiências semelhantes. O único pré-requisito para que isso ocorra é está disponível para ajudar.

Compreendi também que a minha indignação em ser obrigada a ir à missa da governadora, me vendava os olhos impedindo de enxergar que ir a igreja poderia se uma boa experiência. O mais estranho é que, depois de ter tido consciência disso, quando a minha ida era dessa vez por vontade própria, dei de cara com a igreja fechada. Por algum motivo, que soube depois, a missa fora adiada e todos já haviam ido para as suas casas. Eu que agora queria entrar na igreja já não podia mais.

Toda essa experiência, do começo ao fim, foi muito significativa para mim. Isso me aconteceu há uns vinte anos atrás e resolvi escrever agora a fim de estimular outras pessoas a terem atitudes ao passar por circunstâncias semelhantes. Aconteceu comigo, mas, pode acontecer com qualquer um.


Ajudar ao outro é o modo mais eficiente de aprendermos mais sobre nós mesmos.  

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O LIMPADOR DE PARA-BRISAS

Que o transito da cidade de Natal está um caos, isso todo mundo já sabe. Os motivos também: As terríveis e infindáveis obras da copa (“os legados”); A falta de estrutura das vias públicas para acomodar uma absurda frota de veículos particulares que, de acordo com as pesquisas, trata-se da segunda maior frota no Brasil em comparação com o numero de habitantes, perdendo apenas para São Paulo; As outras obras inacabadas que se arrastam lentamente há anos ou encontram-se totalmente paradas, por pura incompetência dos governantes e comodismo nosso; Os motoristas inábeis e, pior ainda, os maus educados que se acham espertos furando filas e ignorando totalmente o que é gentileza.

Agora, imaginemos esse trânsito, às seis horas da noite, na véspera de um feriado, na saída do conjunto Cidade Satélite para atravessar a BR 101 e alcançar o sinal da entrada da Avenida Maria Lacerda... Foi o que enfrentei ontem.

Lá venho eu, seguindo uma procissão de carros para alcançar a BR. Na esquina, ponho o braço para fora, esticando o polegar, em apelo às gentilezas das pessoas para me deixarem atravessar e rezando que uma moto não me pegue de surpresa pelo meio ao transpassar os corredores dos carros.

Consegui, enfim, chegar ao outro lado da pista. Agora exercito a paciência de enfrentar uma fila enorme de carros, passando apenas a primeira marcha e me arrastando um metro por vez até alcançar o sinal.

Por sorte, uma músiquinha nessas horas ajuda a relaxar e isso eu sei bem aproveitar, faço um showzinho particular dentro do carro ignorando os motivos para estresses lá de fora e ignorando também os olhares nos outros carros com os balõesinhos saindo da mente: - É uma doida?

Eis que subitamente acaba o meu “relex”, de longe eu já observo os benditos “flanelinhas” limpando (ou sujando mais ainda) os para-brisas dos carros em troca das moedas que a gente se vê na obrigação de dar. A sensação que eu tenho é quase a mesma de ser pega numa blitz da polícia rodoviária. A vontade de fugir daquilo.

Já começo a tatear dentro do carro tentando encontrar o pagamento para o serviço do rapaz. Não encontro nenhuma moeda. Inicio então o ensaio mental do meu discurso para me justificar: – Desculpe-me, estou sem nenhuma moeda. Fica para uma próxima vez?!

Dito e feito. Lá vem ele, direto pra meu carro, ignorando os meus apelos de – Não, não precisa! Não limpe, estou sem moedas! – O tal já inicia o seu trabalho espremendo uma garrafinha de plástico e jogando aquele jato de água no para-brisa que dá a impressão de ir atingir os nossos rostos.

Fico ali, impotente, assistindo, torcendo que ele, ao menos, não quebre as palhetas do limpador, como fez outro, me dando um prejuízo maior de ter o vidro arranhado.

O jato de água escorrega pelo vidro e aos poucos vai revelando a imagem daquele menino-homem, compenetrado no seu serviço instantâneo de limpar o vidro. Fico prestando atenção nele.

Observo o seu “quase sorriso” de dentes estragados e a minha mente viaja em questionamentos: - A quem será que ele recorria quando criança, em seu sofrimento com dor de dente? – Quem lhes acalentava os medos, as ansiedades e as frustrações? – Quem lhes supria as carências de mimos, de atenção e até mesmo de necessidades básicas? – Quem contribui para torna-se o que hoje é - “um limpador de para-brisa”?

Lhes pago apenas com um sorriso carinhoso e um obrigado. Recebo de volta outro gesto e palavras de gentileza e saio liberada pelo sinal verde, com o coração apertado levando a imagem daquele rapaz que poderia ser meu filho e que se fosse não estaria ali naquelas condições.
(Ivana Lucena 01/05/2013).


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